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terça-feira, 22 junho 2021 14:17

Mbutsa, Wu kwere ou Ngoma: a prática de ritos de iniciação no sul de Moçambique

momento de concertação que antecede a cerimónia de ritos de iniciação momento de concertação que antecede a cerimónia de ritos de iniciação

Depois de explorar um pouco sobre os ritos de iniciação na região norte de Moçambique, vamos agora falar sobre os ritos de iniciação em algumas regiões do sul de Moçambique, particularmente na província de Inhambane. Como nas outras regiões do país, os ritos de iniciação simbolizam a entrada de rapazes e raparigas à vida adulta.

Mbutsa e Wu kwere ou Ngoma, são as cerimônias tradicionais praticadas nesta região do país, cada uma com as suas particularidades, simbolizando a transição das raparigas e rapazes, respectivamente, da adolescência para a fase adulta.

A Vovó Suluwane, uma "sungukati" (anciã) de 60 anos de idade, é detentora de um profundo conhecimento sobre a matéria, e prédispôs-se a partilhar com os leitores da Tsevele.

Visivelmente honrada, num esforço movido pela força de vontade de falar, a avó Suluwane soltou a sua voz que ainda que velha, constitui uma importante via de transmissão de conhecimentos.

Mbutsa

Mbutsa, em primeiro lugar é uma cerimônia tradicional praticada desde há muito tempo, e que continua nos dias de hoje como forma de valorizar o legado transmitindo às novas gerações, as vivências dos ancestrais, introduziu a nossa fonte.

Embora seja uma cerimônia restrita e privada, a Mbutsa acontece também como forma de anunciar na comunidade, a entrada da mulher à vida adulta. Também conhecida por "ku kinelwa", a Mbutsa ocorre quando a rapariga atinge a puberdade, momento em que esta observa a primeira menstruação.

Assim que a rapariga descobre sinais da primeira menstruação (manchas de sangue nas suas roupas íntimas), esta deve alertar a mãe ou outra pessoa de sexo feminino mais próxima e de muita confiança. A primeira intervenção da mãe é colocar a rapariga em isolamento, tradicionalmente na periferia da casa, entre arbustos ou na casa onde a rapariga dorme ( nas famílias tradicionais Africanas, cada faixa etária possui seu dormitório).

Ao isolar a filha, a mãe amarra em volta da perna da rapariga, "kalhwani" ( um fio/corda que se obtém da raiz de Xexenga ou Encephalartos ferox). Este fio, considerado o neutralizador de azar,  serve para proteger a rapariga contra “agentes estranhos”.

Depois disso, a mãe encaminha imediatamente a informação às "va hahani", ou seja, as tias (irmãs do pai da rapariga). São as tias as encarregadas da cerimônia, a mãe não possui nenhuma expressão.

Chegadas as tias, interagem com a rapariga, para perceber as circunstâncias do facto e apurar se esta primeira menstruação ocorreu naturalmente, ou terá sido provocada por “agentes externos”.

Assim que elas certificarem tratar-se de um processo natural, a rapariga é mantida em isolamento, até á fase da cerimônia, dentro de no máximo dois dias, para dar tempo de chegada das tias que vivem em locais distantes.

Chegado o dia de Mbutsa, as tias reunidas, preparam água limpa, uma capulana, uma blusa, roupa interior e uma vara.

Assim que os vizinhos ouvirem o canto ao o som do batuque, vão perceber que naquela casa, há uma rapariga que acaba de ver a sua primeira menstruação.

A cerimônia, que por norma é feita ao romper da noite, inicia com um canto que ao som do batuque vai acompanhando a volta que vão dando, no exterior da casa principal que culmina com a entrada destas na casa.

É dentro da casa onde as tias vão explicar à sua "tshanzana" ou lhazwana" (filha do irmão, em relação à irmã), todos os procedimentos a ter em conta na vida adulta. É ensinada como comportar-se diante dos pais, da família e da comunidade no geral

A rapariga é ensinada como deve fazer a sua limpeza pessoal, o uso de penso para as próximas fases de menstruação, o uso correcto e periodicidade da permanência da roupa interior no seu corpo, como fazer o banho, especialmente como lavar os órgãos genitais.

A nossa fonte explicou que é nesta ocasião onde a recém adolescente é advertida a não fazer relações sexuais antes do casamento tradicional (lobolo). É orientada a avisar as tias, logo que esta se deparar com o primeiro homem a lhe pedir em namoro.

Após estas orientações, um dos irmãos, geralmente o mais velho, faz-se à casa onde a rapariga encontra-se em isolamento, para com base numa vara de "kwakwa", (uma planta que dá frutos aromáticos dos quais se produz "fuma"), bate duas vezes na irmã, para esta não esquecer todas as recomendações dadas.

E porque o objectivo principal de Mbutsa é preparar a rapariga para a vida adulta, com particular enfoque no casamento, a função das tias é de munir a "tshanzana" ou "lhazwana" de capacidade mental, espiritual e física, para que nada falhe no seu casamento, daí que se esta rapariga não prestar serviços de qualidade aos futuros sogros, ao marido e à comunidade,  a falha terá havido nesta cerimônia.

Se esta não atender o marido com satisfação na cama, a culpa é das tias, que não terão incutido bem a mensagem.

É nesse sentido que, no final da cerimônia,  há um outro procedimento a ser feito. A rapariga é submetida a "ti lhanga" ou tatuagens tradicionais, as cicatrizes responsáveis pela estimulação do prazer, que são feitas sobre a barriga da rapariga.

Terminado, a tia encarregue leva um remédio em líquido previamente preparado, esfrega sobre as feridas. A rapariga fica entre cinco a seis dias sob fortes medidas de isolamento, sem usar blusa como forma de arejar a barriga.

Depois dos seis dias, embora as feridas não estejam totalmente cicatrizadas, a rapariga termina o isolamento, executa tarefas domésticas, vai à escola, etc.

A nossa entrevistada contou que o objetivo de incluir "ti lhanga" nos ritos de iniciação feminina visa preparar a rapariga para ser mais "sexy". Segundo ela, acredita-se que as tatuagens tradicionais servem de estímulo do prazer masculino durante o acto sexual. Para os homens da época da anciã Suluwane, aquilo tornava a mulher mais atraentes, pois estas conferem, segundo a nossa fonte, muita formosura e fascínio.

 Com as tatuagens, a rapariga tem o direito de partilhar conversas e experiências com as mais velhas, pois, ela já é adulta.

 

Wu kwere", ou "Ngoma

Finda a explicação sobre a Mbutsa, convidamos a nossa fonte para falar sobre o ritual masculino, "Wu kwere", ou "Ngoma", nas línguas do sul de Moçambique.

A circuncisão masculina (Wu kwera ou Ngoma), igualmente é a chave que dá acesso á vida adulta. Os jovens submetidos a este procedimento cirúrgico, já gozam de uma reputação e respeito de toda a sociedade. São "homens" de verdade.

Por exemplo, na aldeia onde a anciã Suluwane passou a sua infância e adolescência, tal como as mulheres sem "ti lhanga" não podiam partilhar conversas, locais de banho com as que tinham, o mesmo sucedia com os rapazes. Os homens que não tivessem feito circuncisão eram considerados crianças, mesmo quando já fossem adultos, e não tinham direito de convívio com os outros.

Quando os rapazes da aldeia desciam à lagoa ou ao rio para tomar banho, todos tiravam a roupa, primeiro para descobrir quem não tivesse feito circuncisão. Aos que não tivessem feito circuncisão, não se dava o direito de fazer banho juntamente com os outros já circuncisados, supostamente para não acabar a água, através do seu "tubo". A nossa fonte, contou que os homens não circuncidados, não poderiam encontrar parceiras.

Todos na aldeia sabiam quem "saltou batuque e quem não saltou". Saltar batuque (ku thlula Ngoma), é a expressão usada para se referir á circuncisão.

Os rapazes circuncidados eram considerados "homens" capazes. Eram temidos pelos demais na aldeia. A anciã Suluwane, explicou que uma das vantagens da Wu kwere é a excelente prestação do homem durante o acto sexual.

Em resultado da circuncisão, a "cabeça" ou glande, fica exposta ao contacto directo com a roupa íntima. Isso serve de treinamento para reduzir a sensibilidade e demorar mais tempo durante o acto. Além desta vantagem, a circuncisão masculina melhora a higiene genital.

A remoção do prepúcio deixa descoberta a parte da glande, permitindo arejamento do pênis, anulando a sujidade que podia se alojar no prepúcio.

Por essa razão, explicou a avó Suluwane, a primeira coisa que uma rapariga fazia ao ser pedida em casamento, era certificar se o futuro esposo estava ou não circuncidado. Tal como as tatuagens da mulher, a circuncisão do homem também confere maior poder de estimulação sexual. ”O prazer é maior com um homem circuncidado”, confidenciou-nos a avó Suluwane.

Para a anciã, os dois ritos de iniciação, eram indispensáveis na formação ou educação dos indivíduos da sua época. Os ritos de iniciação era uma forma de educação, tal como o é a escola. É aqui onde os jovens aprendiam a conviver, respeitando as diferenças.

As mulheres e os homens recém-promovidos à vida adulta, eram permanentemente submetidos a aprendizagens diversas durante as actividades diárias. Os homens executavam tarefas exclusivamente masculinas (caça, pesca, construção, fabrico de utensílios). Por sua vez, as mulheres aprendiam actividades como cozinhar, lavar, cuidar do marido e das crianças.

É nos ritos de iniciação onde se adquire valores como a coragem, bravura, paciência, resiliência, humildade, preparando homens e mulheres para a vida, concluiu a avó Suluwane, visivelmente honrada pela nossa visita.

 

Escrito por Amadeu Quehá para Tsevele

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