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terça-feira, 12 setembro 2023 14:39

Lume da noite (Herpes Zóster): disputas entre o conhecimento tradicional e convencional

Lume da noite, cientificamente Herpes Zóster, é uma doença caracterizada por queimaduras no corpo, que culminam com a saída de pequenas bolhas de água ou mesmo feridas características do momento pós-queimaduras. Em Moçambique, e em Inhambane em particular, existe a crença de que o chamado lume da noite é fruto de superstição. Entretanto, a ciência posiciona-se do lado oposto e explica que o herpes zóster é uma doença como outra qualquer. Aqui, neste texto, vamos explorar ambas as versões para dar a conhecer o que se diz a respeito deste mal nas comunidades locais, a começar pela versão tradicional.

E para nos revelar o mundo de mistérios à volta desta doença, sob a perspectiva tradicional, contamos com a senhora Teresa Cumbe, natural e residente em Inhambane. Ela não é médica tradicional mas, segundo seu testemunho, já acompanhou e tratou diversas pessoas que apareceram com a enfermidade.

A fonte discorda da ideia de o lume da noite ser apenas uma patologia como outra qualquer e refere que: “É uma doença mandada por alguém para te queimar, sem que você saiba”, e justifica a sua opinião pelo facto de a doença não atingir a vítima durante o dia mas sim de noite, enquanto dorme. 

“Pode-se dar o caso de uma pessoa estar a dormir e sonhar com alguém a lhe bater e daí a doença formar-se”, explica a senhora Teresa, acrescentando que pode também acontecer de a pessoa molhar com chuva e sentir muita comichão pelo corpo, e assim desenvolver o problema. Por isso, ela partilha que: “Para o caso dos meus filhos, quando chove e molham, para prevenir, dou-lhes de beber da água misturada com pedaços de coqueiro que conservo no congelador”.

Qualquer um está sujeito a ser acometido pelo herpes zóster, desde crianças até idosos. A entrevistada alerta para que, em casos de a pessoa acordar com o lume da noite, corra em busca de ajuda qualificada, pois a doença pode virar um tormento quando tratada por alguém inexperiente.

Tratamento tradicional

De acordo com Teresa Cumbe, a quem os seus antepassados revelaram o conhecimento num sonho, existem quatro formas de tratamento tradicional do lume da noite.

O primeiro consiste em pedaços de um coqueiro atingido e destruído por um raio (descarga eléctrica atmosférica) fervidos em água colectada da chuva. O doente toma o remédio em doses como se fosse água normal. O segundo tipo de remédio é a papa de farinha de milho misturada com pedras tiradas do alto mar e carne de galinha (galinha, se o doente for homem, e galo se for mulher).

Em terceiro lugar, temos o tratamento com ovos, especificamente dois. Neste caso, os dois ovos são quebrados e esfregados junto com sabão nas feridas do doente. As feridas são, de seguida, lavadas com o primeiro remédio, o da água com os pedaços de coqueiro.

O último remédio para tratar o lume da noite é uma planta silvestre que em gitonga é designada por mphacama nya bvimbe, cujas partes são torradas até ficarem escuras e depois piladas até virarem pó. Finalmente, adiciona-se o pó a uma pomada qualquer e põe-se nas feridas.

Orientações

Durante a medicação, o doente não deve ingerir alimentos quentes, devendo deixá-los arrefecer, e sempre que sentir sede substitui água pelo remédio de pedaços de coqueiro com água de chuva.

A nossa entrevistada referiu que um tratamento adequado é essencial para garantir que a doença não volte a atacar e evitar a morte, pois “quando a água da queimadura atinge a garganta é fatal”, e finalizou dizendo que “o lume da noite não se dá com injecção nem comprimidos. Pode-se dar o caso de aplicar a injeção e, aparentemente, o problema passar, mas, ao andar do tempo, a pessoa pode ter queixas relacionadas à doença”.

O que diz a ciência?

Lume da noite é uma doença cientificamente conhecida como Herpes Zóster ou Zona. Quem explicou isso foi o Doutor Avertino Amós, Médico de Clínica Geral no Consultório Médico Esperança, no distrito de Vilankulo, Inhambane.

Segundo Amós, trata-se de uma infecção que resulta da reactivação do Vírus da Varicela Zóster (VVZ), que fica no seu estado lactente no organismo após contraído em algum momento no passado. A doença manifesta-se quando o vírus já tem condições suficientes para tal e isto acontece a nível da região do gânglio nervoso afectado. Nessa altura começa a provocar inflamações a nível da pele e os sinais mais clássicos são dor intensa no local abrangido, alterações da sensibilidade na região, principalmente do tacto.

Acontece também, referiu o nosso entrevistado, de o infectado ter uma sensação de queimação no local, formigueiro, sensações de vibrações, mesmo na ausência de um estímulo próprio que esteja a provocar a vibração. Dois ou três dias depois, ou mesmo antes que isso, há uma erupção no local afectado, em que saem bolhas de água, como se o indivíduo tivesse queimado com água, acompanhado de uma vermelhidão.

Existem factores que podem criar condições para que o vírus se manifeste, como o caso de imunidade baixa, causada, por vezes, pela infecção pelo vírus do HIV ou outras doenças como diabetes. A baixa da imunidade pode acontecer também quando se estiver a tomar alguma medicação que a reduza. Ou seja, qualquer factor que altere a imunidade do indivíduo constitui-se como uma oportunidade para o vírus se manifestar, uma vez que ele já esteja instalado no organismo.

Entretanto, o médico avisou que: “não se pode associar o herpes zóster com o HIV, apesar de a principal causa de imunodepressão no nosso meio ser o HIV”, associação que muito se faz nas comunidades locais. Doutor Amós disse que qualquer um pode contrair o herpes zóster, até porque uma das formas de contágio é pelo contacto íntimo com uma pessoa infectada pelo vírus ou de forma indirecta por objectos contaminados.

Mesmo quem tenha tido varicela em algum momento da vida pode, posteriormente, contrair o herpes porque o vírus fica adormecido no organismo do indivíduo, mesmo depois do tratamento, e quando há condições para a sua manifestação, ele é reactivado.

O tratamento da doença é baseado no alívio dos sintomas, entre eles a dor, para a qual são usados analgésicos. Também podem ser usados antivirais orais para combater o vírus bem como compressas úmidas que ajudam a amenizar as dores. As compressas devem, preferencialmente, ser usadas no local antes da erupção.

O tratamento pode durar entre 7 a 14 dias, “varia dependendo do grau de imunocomprometimento do indivíduo, ou se se trata de criança ou adulto”, concluiu o Doutor Amós.

Falando por experiência

José (nome fictício) é um jovem natural e residente em Inhambane. A sua experiência com o lume da noite aconteceu em 2019. “Eu dormi, e despertei na madrugada com uma sensação de quentura na cara, como se me tivessem colocado água quente. Quando amanheceu, vi-me no espelho e percebi que tinha bolhas de água na cara, como se de facto eu tivesse queimado”, explicou.

Depois da constatação, partilhou o sucedido com um vizinho, que confirmou tratar-se da doença. Isso foi tranquilizante para José uma vez que já tinha ouvido falar, mas nunca tinha visto alguém com a doença. “O que me tranquilizou foi saber que existia uma explicação para aquilo”.

Ele começou então a fazer o tratamento com mel. Também dirigiu-se ao hospital, onde foi receitado paracetamol. “Acredito que o paracetamol era para atenuar as dores, mas o que me curou mesmo suponho que tenha sido o mel”. Já curado, José ficou com manchas características de feridas de queimaduras, e por porte alguém lhe receitou uma pomada, “por questões estéticas”, referiu. 

Falando sobre o convívio social, contou que as pessoas se assustavam quando o vissem, mas a convivência era, no geral, normal. “Outras até, em jeito de brincadeira, questionavam se eu não teria sido queimado por minha esposa”, concluiu José, aos risos. 

Escrito por Vanila Amadeu para Tsevele

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